Por Heloisa Villela
O Movimento Brasil Livre (MBL) quer criar um partido político, chamado Missão. Mas não quer que os eleitores saibam que o Missão e o MBL são a mesma coisa, dirigidos pelas mesmas pessoas e com a mesma ideologia. O ICL Notícias teve acesso exclusivo a conversas gravadas de líderes da organização a respeito da estratégia de coleta de assinaturas nas ruas do país para fundar o partido. E elas deixam claro: a ordem é enganar o público para pegar as assinaturas.
Para fundar um partido político, qualquer grupo tem prazo de dois anos para entregar ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE) um total de cerca de 500 mil assinaturas em pelo menos nove estados diferentes. As assinaturas devem corresponder a pelo menos 0,5% dos votos válidos da última eleição para a Câmara dos Deputados. Esse é o passo mais difícil e demorado. Registrar o partido em cartório, elaborar um programa e definir a linha ideológica são as etapas mais rápidas. A coleta de assinaturas exige ir às ruas explicar à população qual é o partido e o que ele pretende.
É justamente nesta fase que o MBL está enganando a população, intencionalmente. Os coordenadores da tarefa passam instruções expressas aos coletores de assinaturas para que eles nunca falem nem vinculem o nome do MBL ao do partido Missão. Quem assina o documento concordando em pedir que o TSE aprove a criação da legenda não deve saber que o projeto vem do grupo liderado pelo deputado federal Kim Kataguiri (União-SP).
O ICL Notícias obteve uma gravação em que a coordenadora da coleta de assinaturas da zona sul de São Paulo, Débora, conhecida como Debby, justifica a determinação ao ex-integrante do MBL Vítor Rabelo Pereira. Na conversa, Vítor pergunta diretamente se Debby não se sente desconfortável com a manobra, já que todos se dizem cristãos no grupo e, segundo Vítor, ser cristão é antes de mais nada perseguir a verdade.
Débora embarca em uma longa explicação para justificar a fraude. “Se houvesse mentira ou engano, com certeza isso me incomodaria. Como você mesmo disse, onde há mentira e engano não há espaço para Cristo. Cristo é a verdade”, diz ela no telefonema. Mas repete a justificativa adotada pelos dirigente do MBL, se referindo a uma reunião da qual Vítor também participou:
“Na reunião que você citou, quando fazíamos o treinamento junto com a Meg, nós orientávamos o seguinte: não mencionar o MBL. Por que? Porque estávamos formando um partido, e são CNPJs diferentes. Quando você pega a assinatura de uma pessoa para a criação de um partido, você fala do partido, não do MBL. Você não vai citar deputados que são do MBL porque eles estão vinculados a outros partidos. Eles nem podem se vincular oficialmente ao partido que está sendo criado. Se você observar, não verá o Kim (Kataguiri) ou o Guto (Guto Zacarias, deputado estadual pelo União de SP) falando diretamente sobre o novo partido. Eles podem dizer algo como “o MBL está formando um partido” ou “o MBL está criando um novo partido”. Mas não podem se vincular pessoalmente ao partido por causa de questões legais, como infidelidade partidária”.
Evelyn Melo, advogada eleitoral, diz que não existe esse problema. Um político pode ser eleito por um partido e mudar para uma agremiação nova, que acaba de ser fundada, sem perder o mandato. Mas ela destaca que um deputado como Kim Kataguiri, eleito pelo União Brasil, pode temer retaliações internas caso os dirigentes do partido saibam que ele está diretamente envolvido na criação de uma outra legenda. Isso pode provocar perda de cargos em comissões, e até mesmo a posição de vice-líder que tem hoje. Perda de poder e de visibilidade.
O perfil de Debby no Instagram revela que ela é coordenadora do MBL e também do partido Missão. Na conversa, ela reafirma que não revelar a relação entre os dois é uma decisão da cúpula do movimento. “Por isso os coletores (de assinaturas) são orientados a não mencionar o MBL diretamente. Além disso, 99% das pessoas não sabem o que é o MBL. Se eu abordar uma pessoa na rua e disser, oi, eu sou a Débora, estou coletando assinaturas para a formação de um novo partido, do MBL, com pautas X e Y, as pessoas provavelmente vão perguntar: o que é o MBL? Isso só cria mais um ponto para eu explicar, sem necessidade”.
Em um terceiro momento, Débora volta a afirmar que os coletores de assinatura de fato enganavam a população. “Sim, nós orientávamos a não falar sobre o MBL”, diz ela. “Mas por que deveríamos? Isso não é relevante para o foco do trabalho”.
Em conversa com o ICL Notícias, Vítor rememorou outras trocas de informações no grupo. E o que ouviu dos coordenadores. O objetivo era dar um jeito de colher as assinaturas. Se depois de assinar a pessoa quisesse saber um pouco mais, entender se o novo partido tinha alguma ligação com algum grupo organizado, ele podia até se dar ao trabalho de explicar. Mas já com a assinatura garantida, para a pessoa não desistir de apoiar a criação do partido. Nas reuniões para organizar a coleta de assinaturas, ele ouvir a orientação de omitir que o Missão e o MBL eram a mesma turma. Ele achou tudo tão esquisito que decidiu sair do grupo.
O site The Intercept Brasil publicou uma reportagem, do jornalista Giovanni Pannunzio, no dia 12 de novembro do ano passado, na qual conversou com 13 pessoas que foram enganadas pelos ativistas do MBL. Elas assinaram o pedido de formação do partido Missão convencidas de que estavam dando apoio a um manifesto em defesa da saúde e da educação.
A reportagem dá os nomes das pessoas que se sentiram enganadas, e o local onde foram abordadas pelos coletores de assinaturas da organização. A pedagoga Laís Bezerra, por exemplo, contou ao Intercept que foi abordada em um ponto de ônibus da zona sul de São Paulo por um rapaz que apresentou um abaixo-assinado para melhorar a educação e a segurança da cidade. Como não sabia o que era “Missão”, foi procurar na internet e descobriu, dias depois de dar apoio à fundação do partido, que ele estava ligado ao MBL.
A advogada eleitoral Maira Recchia considera que as gravações obtidas pelo ICL Notícias e o depoimento de eleitores levantados pelo Intercept podem ser motivo para impugnar o pedido de fundação do Missão. O MBL já coletou e apresentou ao TSE mais de 250 mil assinaturas. “Não sei como estão fazendo a coleta, mas se as pessoas foram induzidas ao erro, se se sentiram enganadas, isso pode ser judicializado”, disse Maira.
Se for provado na Justiça que houve uma simulação, o futuro partido corre o risco de perder o direito de se estabelecer. “O Ministério Público pode agir de ofício, não precisa ser provocado, e suspender a criação desse partido se tomar conhecimento do que aconteceu”, afirmou a advogada.
Débora não foi a única coordenadora do MBL a documentar a fraude. Um ex-integrante da organização, que pediu para não ser identificado, ouviu a mesma desculpa de José Luiz da Costa Neto, ex-coordenador estadual do MBL em São Paulo e ex-secretário de Kim Kataguiri. O denunciante anônimo gravou e disponibilizou para o ICL Notícias um trecho da conversa com José Luiz na qual ele afirma: “O Partido Missão tem um CNPJ e o MBL tem um CNPJ. São coisas totalmente diferentes. Lógico, as ideias, as ideias todas ali, a ideologia, são atreladas ao que o MBL é. Mas são coisas diferentes tá ligado? Tanto é que muitas pessoas que vão trabalhar no partido Missão não são pessoas que vão vir lá do MBL. Foi o que eu sabia quando estava lá atuando. Devido a muitas pessoas serem bolsonaristas, petistas, não falar que é pro MBL. Isso é normal, pô!”.
O ICL Notícias procurou representantes do MBL para entender o motivo da orientação de não informar os eleitores a respeito da ligação do movimento com o partido Missão. Rafael Minatogawa, assessor de imprensa do deputado Kim Kataguiri na Câmara dos Deputados, disse que não faz parte da equipe de coleta de assinaturas, nem o deputado. “Acredito não poder ajudar dessa vez”, respondeu, por escrito. Jessica Maria Oliveira Monteiro, assessora do parlamentar e coordenadora do MBL em Brasília, também não respondeu a pergunta. Exigiu primeiro saber quem havia passado ao ICL Notícias o telefone dela. E não explicou por que a recomendação de evitar ligar o Missão ao MBL. O deputado Kim Kataguiri não respondeu ao recado enviado, por escrito, ao celular dele.
Por dentro da seita do MBL
A política nunca despertou a curiosidade de Vítor Rabelo Pereira. Casado, pai de um filho, ele nasceu e cresceu na zona sul de São e sempre teve mais interesse em religião e filosofia do que nas discussões ideológicas que dividem grupos políticos. Ao telefone, ele disse que sempre teve vergonha da política brasileira, muito preconceito também. Vítor tem 32 anos, dois filhos, e cresceu, como disse, assistindo programas na televisão como Casseta e Planeta, da TV Globo, e CQC, da TV Bandeirantes nos quais, avalia, “a política sempre foi uma forma de tirar sarro. É revoltante”.
Cristão, Vítor tem na religião a baliza ética do comportamento pessoal. E só passou a se interessar por política quando frequentou um curso de administração. Nas aulas de economia, ouvia a professora falar de política e se sentia despreparado para os debates. “Preciso saber disso”, pensou. Por isso, correu pesquisou grupos de discussão política na internet. Foi assim que entrou em contato com o Movimento Brasil Livre, o MBL. “Era uma galera muito nova, que trouxe polêmica para a política”, explicou.
Quando chegou aos vídeos do deputado federal por São Paulo Kim Kataguiri, fundador do MBL, Vítor encontrou os links para vários grupos de WhatsApp da organização. “Achei que seria legal para estudar”, contou. Vítor diz que ainda se identifica com a imagem política de Kim Kataguiri e do deputado estadual Guto Zacarias. Ele se preocupa com a situação da população de rua de São Paulo e a vertente religiosa, cristã, desses políticos tem forte apelo para Vítor.
Ele tentou entrar na academia do MBL, a Valete. Mas não tinha dinheiro suficiente para estudar lá. “Não fui aceito”, conta. E o preço era alto. Mais de mil reais. “Um barão e pouco,es tava pensando em parcelar, mas não cheguei nem a passar pela preparação deles. Acho que eu falava muito, manifestava minhas opiniões”, recorda.
Uma das pessoas com as quais ele se desentendeu foi Lucas Taglione, denunciado em uma reportagem do site The Intercept Brasil, como um neonazista convicto. “Cheguei a bater boca com ele porque falou umas coisas absurdas”, conta Vítor. “Na época, ele era administrador de um grupo”. Lucas disse em um programa da internet, por exemplo, que moradores das favelas deveriam ter limites no número de filhos que poderiam ter. “Eu estava no grupo quando ele começou a falar disso. Printei e mandei para os outros administradores”, contou.
Lucas acabou saindo do MBL mas garantiu que logo, logo, estaria de volta. Vítor também abandonou o MBL, mas por outros motivos. Como cristão, ele diz que a mentira é inaceitável. Quando pediram a todo mundo para esconder a relação do MBL com o partido Missão, ele não gostou. E da experiência como ex-militante, ele tem memórias preocupantes.
“O MBL hoje eu vejo mais como uma formação militar. É pior do que seita. É uma parada, uma preocupação de guerra psicológica. E acho isso muito preocupante. É bizarro! O MBL é muito mais sombrio do que eu imaginava”, disse.