Por Pedro Stropasolas e Afonso Bezerra – Brasil de Fato
Das 73 pessoas encontradas em condições análogas à escravidão na construção de condomínios de luxo no litoral sul de Pernambuco, em agosto de 2024, 16 prestavam serviço para a gigante imobiliária Moura Dubeux, aponta documento do Ministério do Trabalho e Emprego obtido pelo “Brasil de Fato” no Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), via Lei de Acesso à Informação (LAI).
De acordo com o documento, o resgate dos trabalhadores no empreendimento da Moura Dubeux Engenharia S/A ocorreu no dia 20 de agosto de 2024 na cidade de Ipojuca (PE), a 70 quilômetros de Recife. A construtora foi uma das 11 empresas autuadas pelo MTE em Pernambuco, que também inspecionou oito alojamentos e emitiu 1166 autos de infração em diferentes empreendimentos.
Da sua parte, a Moura Dubeux considera “absurda” e “ilegal” a acusação que recai sobre a empresa e, inclusive, a própria fiscalização do MTE. Em nota enviada à reportagem, argumenta que as autuações estão sendo contestadas administrativamente e ocorreram com base em uma “interpretação equivocada” que considerou como “alojamentos” imóveis alugados voluntariamente e por iniciativa dos próprios trabalhadores.
A empresa diz que não tem “qualquer ingerência” sobre os dormitórios fiscalizados, classificando os espaços como “a casa dos trabalhadores”. A localização de alojamentos de trabalhadores distantes dos canteiros de obras é, justamente, apontada por lideranças sindicais como uma estratégia usada por construtoras em Pernambuco para “driblar” a fiscalização.
Alojamentos fora da obra
Dulcilene Morais, diretora do Sindicato dos Trabalhadores da Construção Civil e Pesada (Marreta), não informou o nome das empresas envolvidas nas inspeções de agosto de 2024, no litoral sul de Pernambuco. Mas deu detalhes de como a presença de alojamentos fora do ambiente das obras tem sido usada pelo setor da construção civil no estado.
“Os alojamentos, que antes eram feitos dentro da obra, hoje não fazem mais parte da obra, porque é uma maneira também de evitar a fiscalização no local de trabalho. Esses trabalhadores alugam casas perto da obra e aí não se tem controle da ação de fiscal nem do sindicato, nem do Ministério do Trabalho, nem da própria Procuradoria”, avalia.
Morais conta que o sindicato vem fazendo uma “fiscalização dirigida” para localizar alojamentos fora do ambiente das obras e intervir de forma direta nas condições degradantes de trabalho.
“É um processo de investigação para dar condição mínima para essas pessoas que geralmente não conhecem a região, não são daqui, são de outra localização, ou do interior do Estado. O capitalismo, as construtoras, os empresários, eles planejam bem essa ação para impedir que a fiscalização chegue até eles”, completa a sindicalista.
Trabalhadores dormiam em cima de folhas de papelão em um dos alojamentos inspecionados pelo MTE. Não há informações se esse era o caso do resgate envolvendo a Moura Dubeux.
A precariedade dos locais inspecionados
O MTE não deu mais informações sobre a autuação no empreendimento da Moura Dubeux no dia 20 de agosto de 2024, mas forneceu um panorama geral sobre as condições de trabalho oferecidas aos trabalhadores nos estabelecimentos inspecionados, dentre eles o da gigante nordestina.
Imagens feitas durante a operação nos condomínios de luxo no litoral sul de Pernambuco apontam a precariedade dos locais onde dormiam os trabalhadores, com paredes com infiltrações e ausência de lençóis em alguns casos. Sem acesso a colchões, alguns dormiam em cima de folhas de papelão.
Edson Cantarelli Guerra, auditor-fiscal do trabalho e chefe do setor de planejamento da Superintendência Regional do Trabalho e Emprego (SRTE) de Pernambuco, descreve a precariedade nos oito alojamentos fiscalizados.
“Os colegas pegaram um alojamento, por exemplo, que comportava razoavelmente quatro pessoas, e ali tinham nove, dez pessoas. E aí você vai ver a estrutura da dormida com quatro colchões, mas dormindo nove naquela casa. Então, cinco estavam dormindo em um sofá ou no chão, ou num pedaço de travesseiro”, explica Guerra.
“Tinham casos lá que não tinham sequer banheiro, outros que o banheiro existia fisicamente, mas não funcionava, sem nenhum tipo de saneamento. Então não é só o constrangimento individual, mas o constrangimento coletivo de todos que residem naquela casa. É essa coletânea de irregularidades que o auditor fiscal enquadra aquela situação como o trabalho escravo, e foi isso que foi encontrado lá”, complementa o auditor-fiscal do trabalho.
A precariedade dos alojamentos inspecionados foi um dos fatores para a classificação pelo MTE de trabalho análogo à escravidão.
A operação conjunta reuniu também agentes da Polícia Rodoviária Federal (PRF) e representantes do Ministério Público do Trabalho (MPT).
A procuradora Jailda Pinto relatou na época que os trabalhadores vinham de vários municípios do Estado, como Palmares e Caruaru, e que precisavam arcar com todos os custos dos alojamentos, além da aquisição de utensílios básicos, como geladeira, fogão cama e ventilador. Segundo ela, um dos locais era conhecido de “Carandiru”.
“Os trabalhadores resgatados [dos diversos empreendimentos] relataram que recebiam cerca de R$ 80 para os custos com a moradia e alimentação. Para conseguir se manter, eles se reuniam em grupos de 12 a 16 pessoas que dividiam um apartamento com uma sala pequena, três quartos, cozinha e dois banheiros. Havia pessoas que dormiam na cozinha e na sala. Eles mesmos construíam as camas que dormiam com madeiras descartadas das obras”, explica Pinto.
O MPT detalha ainda, em nota divulgada após a operação, que o jantar dos trabalhadores não era custeado pelas empresas e que o transporte até as obras era feito em caminhões caçamba, sem qualquer tipo de segurança.
Boom imobiliário no litoral sul
De acordo com a Moura Dubeux, as pessoas encontradas pelo Ministério do Trabalho e Emprego vivendo em condições degradantes não são empregadas ou prestadoras de serviço da incorporadora, e foram contratadas “diretamente por pessoas jurídicas que são proprietárias das Obras, logo, independentes, responsáveis pelas etapas da obra e por sua própria força de trabalho”.
A empresa, única incorporadora nordestina listada na bolsa de valores brasileira, reforça também que até o momento “não teve acesso ao resultado da apuração, o que fere os princípios do contraditório, ampla defesa e devido processo legal (art. 5º, II, LV, CF)”.
O auditor-fiscal do trabalho Edson Cantarelli Guerra, no entanto, argumenta que todas as autuações realizadas em agosto de 2024 foram bem estudadas e se baseiam em fundamentos legais, pois puderam identificar quem realmente se beneficiou da mão de obra analóga a escravidão, “seja por culpa direta ou por negligência no cuidado”.
De acordo com Guerra, a precariedade das condições laborais nos empreendimentos fiscalizados é fruto do “boom imobiliário” vivido hoje no litoral sul de Pernambuco e no norte de Alagoas, que vem gerando uma intensa migração de trabalhadores para a região.
MTE vincula a situação de trabalho análogo a escravidão no litoral sul de Pernambuco ao “boom imobiliário” vivido na região.
“Muitos empregados estavam vinculados a empresas terceirizadas que não tinham estrutura para ser terceirizada, ou em figuras jurídicas que eram feitas visivelmente para mascarar aquela vinculação direta com a grande construtora. E no aspecto do alojamento é a mesma coisa, os requisitos, as condições em que aquele alojamento era criado de alguma forma, e que os trabalhadores chegavam e se mantinham naquele alojamento, foi identificado uma participação direta do empregador”, analisa Guerra.
“O empregador, além da participação direta, não pode se eximir da sua participação indireta naquele fluxo migratório, então ele está se beneficiando da mão de obra que ele precisa que venha de outro lugar, então ele não deve, não pode, negligenciar a chegada desse trabalhador”, completa.
A incorporadora nega que tenha trazido mão de obra de outras localidades. Ela alega não ter fornecido dormitórios ou alojamentos aos trabalhadores, somente “transporte fretado até a obra”.
Verbas rescisórias e lucro da Moura Dubeux
A fiscalização nas praias de Porto de Galinhas e Muro Alto, em Ipojuca, e em Carneiros, no município de Tamandaré, foi coordenada pelo Ministério do Trabalho e Emprego e fez parte da operação conjunta que resgatou 593 pessoas entre 19 de julho e 28 de agosto, em 15 estados.
A reportagem apurou que atualmente a Moura Dubeux tem três empreendimentos imobiliários sendo construídos em Ipojuca, todos da linha Beach Class, uma espécie de condomínio fechado que, segundo a empresa, oferece “serviços de um resort e a rentabilidade de um imóvel de primeira linha para locação”. Dois dos empreendimentos estão situados na praia de Muro Alto (Beach Class Verano e Solare), e o último, na praia do Cupe (Beach Class Summer).
Beach Class Sumer é um dos empreendimentos sendo contruídos pela Moura Dubeux na Praia do Cupe, em Ipojuca.
Criada em 1999 pela construtora, a linha Beach Class tem 29 empreendimentos prontos, em construção e na planta distribuídos em quatro estados nordestinos: Pernambuco, Ceará, Bahia e Alagoas.
Segundo o MTE, cerca de R$693 mil em verbas rescisórias foram pagas aos trabalhadores na época, sendo que 52 deles não tinham qualquer registro de trabalho ou vínculo com as empresas.
Enquanto isso, pouco após o resgate dos 16 trabalhadores, a Moura Dubeux apresentou os melhores resultados de sua história. Segundo a empresa, foram R$ 2 bilhões em vendas e adesões líquidas somente nos primeiros nove meses de 2024.
A incorporadora, líder no mercado imobiliário no nordeste, fechou o ano com R$ 251 milhões de lucro líquido, um crescimento de 61,3% em relação ao desempenho de 2023.
Histórico de violações
Em dezembro de 2014, um pedido de suspensão imediata da divulgação da lista suja do trabalho escravo pela Associação Brasileira de Incorporadoras Imobiliárias (Abrainc), da qual a Moura Dubeux faz parte, foi acatado pelo então ministro do Supremo Ricardo Lewandowski.
Criada em 2003, a “lista suja” do trabalho escravo é considerada um dos principais instrumentos de combate ao trabalho escravo no Brasil. A partir dela, empresas e bancos públicos têm a possibilidade de negar empréstimos, créditos e contratos a empresas e fazendeiros que utilizam trabalho análogo ao escravo.
Na época, a associação de empreiteiras afirmou que a divulgação dos nomes causaria efeitos negativos às empresas, que não teriam direito de defesa, e que a lista deveria ser regulada por uma lei.
Além do resgate de 16 trabalhadores em condições análogas à escravidão, a construtora Moura Dubeux acumula uma série de projetos controversos no Grande Recife e em todo o Nordeste, como a construção das três torres do polêmico Projeto Novo Recife, no Cais José Estelita, símbolo do avanço do setor imobiliário sob o centro da cidade.
A obra foi o que gerou a revolta e a luta do movimento popular e artístico do Ocupe Estelita, que completou 10 anos no ano passado.
“É uma empresa que pelo menos nos últimos 20 anos tem mostrado pouco respeito pelas instituições”, opina o militante do Subverta/PE e ex-Vereador do Recife pelo Psol Ivan Moraes.
“Nós observamos a forma muito truculenta que é a relação desta empresa com a sociedade a partir das lutas, das discussões que se promoviam naquele tempo do Ocupe Estelita. Estou falando em 2013, 2014. Então, é triste que tenha havido essa denúncia. A gente não quer nunca que isso aconteça. A gente prefere que as empresas sejam idôneas, que os trabalhadores sejam contratados no regime de CLT, que recebeu o direitinho, que tentou seus dois garantidos, mas eu não posso dizer de forma alguma que me surpreende”, finaliza Moraes.
Confira a nota da Moura Dubeux Engenharia S/A na íntegra:
“A MOURA DUBEUX está ciente da operação conduzida pelo Ministério do Trabalho em obras localizadas no litoral sul de Pernambuco, referente as condições de trabalho e alojamentos da região. Esclarecemos que não há qualquer empregado ou prestador de serviços da MOURA DUBEUX entre os trabalhadores referenciados pela fiscalização.
As pessoas identificadas na operação são trabalhadores contratados diretamente por pessoas jurídicas que são proprietárias das Obras, logo, independentes, responsáveis pelas etapas da obra e por sua própria força de trabalho.
Apesar disso, a MOURA DUBEUX salienta que as autuações ocorreram com base na interpretação equivocadas e ilegais por parte da fiscalização, que estão sob contestação administrativa, que considerou como “alojamentos” imóveis alugados voluntariamente e por iniciativa dos próprios trabalhadores, ou seja, a casa dos trabalhadores, portanto, fora dos canteiros de obra, , sem qualquer ingerência da MOURA DUBEUX ou das empresas contratantes .
Os colaboradores identificados pela apuração do Ministério do Trabalho foram contratados na localidade, firmaram contratos de aluguel em nome de um dos colaboradores e sem nenhuma participação da Moura Dubeux ou das empresas contratantes.
A empresa esclarece que não trouxe mão de obra de outras localidades para trabalhar no canteiro de obras, não forneceu dormitórios ou alojamentos, e fornece transporte fretado até a obra. Esclarecemos que não reconhecemos a legalidade da atuação fiscalizatória, que confundiu moradias particulares com alojamentos previstos na legislação laboral e que jamais, nunca e em tempo algum os referidos trabalhadores foram colocados em situação degradante, sendo a acusação absurda, arbitrária e ilegal.
A empresa salienta que até o momento não teve acesso ao resultado da apuração, o que fere os princípios do contraditório, ampla defesa e devido processo legal (art. 5º, II, LV, CF).
Com mais de 40 anos de atuação no setor imobiliário do Nordeste, a MOURA DUBEUX é reconhecida por sua sólida estrutura de compliance e compromisso permanente com a legalidade, a ética e a dignidade no trabalho, jamais sendo acusada ou condenada de não proporcionar as condições adequadas de alojamento e de trabalho.
Como dito, a Fiscalização atuou arbitrariamente na residência dos trabalhadores, ou seja, fora dos alojamentos e dos canteiros das Obras. A Moura Dubeux reitera sua confiança nas instituições e nos meios legais para o esclarecimento dos fatos e reafirma seu compromisso com a transparência, a responsabilidade social e o respeito incondicional à dignidade do trabalho humano”.
Fonte: ICL Notícias