Hylodes sazimai, um sapo ameaçado de extinção que sofreu um forte declínio populacional devido às mudanças climáticas (Renato Gaiga)
19 de abril de 2025
Lucas Ferrante – Especial para Cenarium*
MANAUS (AM) – Os anfíbios exercem um papel essencial no controle de pragas agrícolas e de vetores de doenças que afetam os seres humanos, ao mesmo tempo, em que cumprem uma função ecológica vital. Por serem bioindicadores altamente sensíveis às mudanças ambientais, são considerados sentinelas dos ecossistemas. Seu desaparecimento de florestas e brejos indica que há um desequilíbrio profundo na natureza.
No Brasil, país que abriga a maior diversidade de anfíbios do mundo, esse desaparecimento tem sido alarmante. Nosso novo estudo, publicado na Conservation Biology, lança luz sobre as verdadeiras causas por trás de uma crise ecológica que se desenrola há décadas e traz uma revelação: não é um fungo, mas o clima, que tem sido o principal algoz dos sapos e rãs brasileiros.
Por muitos anos, acreditou-se que o fungo Batrachochytrium dendrobatidis (Bd), causador da quitridiomicose, fosse o grande responsável pelas extinções de anfíbios. De fato, esse patógeno devastou populações em países como Austrália, Costa Rica e Equador. Mas no Brasil, nunca observamos eventos massivos de mortalidade atribuídos diretamente ao Bd. E ainda assim, vimos espécies desaparecerem.
Nosso objetivo foi investigar a fundo esse paradoxo. Analisamos dados históricos de declínios populacionais de 90 espécies de anfíbios entre 1923 e 2014. Cruzamos essas informações com registros de eventos climáticos extremos, como secas, geadas e ondas de calor, além de dados sobre a presença do Bd e variações climáticas locais e globais, incluindo as anomalias provocadas pelo fenômeno El Niño.
Os resultados foram claros, os eventos climáticos extremos e as mudanças climáticas graduais, especialmente aquelas impulsionadas pelo El Niño e pelo aumento da temperatura no Hemisfério Sul, foram os principais responsáveis pelos declínios históricos dos anfíbios brasileiros.
O Bd, por sua vez, apresentou um comportamento oportunista. Em vez de preceder os declínios populacionais, suas infecções aumentaram anos depois, quando as populações já estavam drasticamente reduzidas. Isso sugere que o fungo se aproveita de organismos enfraquecidos por estresses ambientais. Em muitos casos, essa infecção não foi letal, o que aponta para uma possível coevolução entre o Bd e os anfíbios brasileiros, que podem ter desenvolvido resistência ao longo do tempo.
As descobertas mudam o rumo do debate. Mostram que, no contexto brasileiro, a narrativa centrada no Bd como vilão principal não se sustenta. Os verdadeiros culpados são os extremos climáticos, intensificados pelo aquecimento global. Dentre os exemplos mais impactantes, está o evento de 2014 no sul de Minas Gerais, onde 26 espécies de sapos desapareceram após uma seca histórica, um impacto direto de uma célula de instabilidade climática regional, associada ao El Niño.
Esses eventos extremos tornam-se ainda mais destrutivos em paisagens fragmentadas. Florestas cercadas por pastagens ou monoculturas se tornam mais secas e vulneráveis a incêndios e mudanças microclimáticas. Populações pequenas e isoladas de sapos, já fragilizadas por perda de habitat, são incapazes de se recuperar de uma geada ou seca severa. O resultado é a extinção local, silenciosa e muitas vezes ignorada.
Nosso estudo também traz um alerta sobre a relação entre clima extremo e o aumento de doenças, um tema central em tempos de pandemias. O mesmo mecanismo que fragiliza sapos e favorece infecções por Bd pode ser observado em patógenos humanos. A pandemia de Covid-19, que teve origem na região de Wuhan, na China, é um exemplo claro dos riscos associados à degradação ambiental.
O aumento de eventos climáticos extremos nas regiões tropicais, como a Amazônia, está diretamente ligado à emergência de doenças zoonóticas. Mais recentemente, surtos do vírus Oropouche no coração da Amazônia, em áreas impactadas pela rodovia BR-319, reforçam a conexão entre destruição ecológica, mudanças climáticas e ameaças à saúde pública, como demonstrado por pesquisadores da Fiocruz em estudo publicado na revista Nature Medicine.
É urgente repensarmos as estratégias de conservação, incorporando o fator climático, especialmente os eventos extremos, em nossos planos. A transição energética, com o abandono dos combustíveis fósseis, se apresenta como uma necessidade eminente. No entanto, ações pontuais não são suficientes para enfrentar a crise climática. Devemos proteger grandes áreas contínuas de floresta, restaurar as conexões entre habitats aquáticos e terrestres e controlar o uso de agrotóxicos e a expansão das fronteiras agrícolas. Somente assim poderemos lidar com as mudanças climáticas e crise de perda de biodiversidade e suas consequências de maneira eficaz e duradoura.
Nosso trabalho é um chamado à ação, mas também um convite à esperança. Ainda há tempo de proteger os anfíbios brasileiros e toda a biodiversidade que depende deles. Mas para isso, precisamos reconhecer o verdadeiro inimigo: o desequilíbrio climático. É ele que enfraquece os corpos, silencia os cantos noturnos e esvazia nossos brejos e florestas. E só enfrentando esse inimigo com ciência, políticas públicas e mobilização social poderemos garantir um futuro para os sapos – e para nós mesmos.
(*) Lucas Ferrante é graduado em Ciências Biológicas pela Universidade Federal de Alfenas (Unifal) e possui Mestrado e Doutorado em Biologia (Ecologia) pelo Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa). Ferrante é o pesquisador brasileiro com o maior número de publicações como primeiro autor nas duas principais revistas científicas do mundo, Science e Nature, de acordo com dados da plataforma Lattes. Atualmente, é pesquisador na Universidade de São Paulo (USP) e na Universidade Federal do Amazonas (Ufam).
Fonte: Agência Cenarium