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Por Leandro Demori
A foto é antiga mas o ódio ainda escorre pela tela: padre Paulo Ricardo segura uma espingarda de bom calibre com a destreza de quem aprendeu balística em um curso de exorcismo. Ao lado dele está Olavo de Carvalho — o trevoso-mor da direita tropical, aquele cujo silêncio pós-mortem ainda povoa memes internet afora (“o que Olavo disse sobre isso?”). Olavo também ele empunha uma espingarda, apoiada em sua grossa barriga. Um jovem insosso com sorriso de masculinidade frágil completa a foto. Tudo na imagem parece ter sido pintado por um Michelangelo empoeirado de carvão que surgiu de repente de algum mundo estranho bem pra lá de onde Dante sonhou. Sorrisos de caçadores estéreis, crentes de que encontraram alguma raposa dentro do confessionário, ou talvez o fantasma do comunismo.
Você provavelmente não conhece o padre Paulo Ricardo. Por um lado, você notará que sua vida era mais feliz antes dessa informação. Por outro, você está totalmente por fora de como o mundo da política anda girando no Brasil. Mas já voltaremos a ele porque, ao menos por ora, nós temos um Papa para enterrar.
Nada naquela foto tirada na Virgínia, na casa de Olavo de Carvalho (“O que ele disse?”), faz lembrar o papa Francisco. É porque Olavo, Paulo Ricardo e o jovem inseguro sequestrado pelo radicalismo torpe odeiam Francisco. Odeiam a ideia de que um Papa como ele (comunista, diriam) possa ter sentado no trono de Pedro.
Pudera: Francisco abraçou pessoas trans na Praça São Pedro e declarou o aquecimento global um “pecado capital”. Abençoou uniões homoafetivas, chamou ricos de “idólatras do dinheiro”. Seus inimigos o chamavam de “marxista de batina”, mas nas periferias de Bogotá ou Manila, onde crianças ainda comem hóstia por falta de pão, ele era o único santo que não cobrava dízimo em dólar. Francisco foi um espinho na carne dos cruzados de WhatsApp. Olavos e ricardos não viam a hora de se verem livres dele.
E agora teremos um Conclave, e dele teremos um novo papa. Uma eleição e um novo chefe de estado, porque assim é, Vaticano é política. O que virá depois da fumaça branca? A frase é inevitável: só Deus sabe. O legado de Francisco virará relíquia ou será vendido como souvenir barato nos grupos de zap?
Papa francisco.
O que nós sabemos aqui na Terra é que um novo papa ligado aos valores de carvoaria da extrema direita daria um impulso em Bolsonaros e nas demais coisas estranhas que temos por aqui. Em Paulos Ricardos que poderiam ser alçados a bispados e ainda mais além com a lideraça de um ultraconservador. Quem sabe um bispo carregando um fuzil? Talvez nada combine melhor com o Brasil dos extremistas do que isso.
Os cardeais — os senhores de batina vermelha saídos de um filme de Fellini dirigido por Jordan Peterson — já sussurram nomes entre o incenso e o wi-fi blindado. Vazam preferências para a imprensa italiana. Acendem a chama das casas de apostas.
Agora imagine o inverso de Francisco: um pontífice que troque a opção pelos pobres pela opção pelos bilionários (“Elon Musk gera empregos”, poderia dizer). Um papa que, em vez de lavar pés de refugiados, lave as mãos, como Pilatos, diante de Bolsonaro, Milei ou Meloni (“Querem calar estes pobres coitados”). Padre Paulo Ricardo, hoje um influencer com muitos e muitos milhões de seguidores, já poderia ensaiar os memes: “Igreja não é ONG!”, “Quem lacra não lucra!” – enquanto segue lacrando e lucrando.
Seus vídeos, mistura de Tomás de Aquino com Olavo de Carvalho, têm uma estética meio cringe-teológica: entre um frame e outro, quem sabe dá pra ver o diabo oculto do afresco de Giotto.
A extrema direita global está de olho no conclave porque ela não precisa apenas de armas, precisa de alfaiates. Alguém que costure a cruz de Cristo a uma suástica discreta; que alinhe o rosário ao fuzil. Um papa ultraconservador seria a unção divina que Orban e Le Pen esperam para decretar que “Deus odeia imigrantes”. Na Polônia, na Hungria, nos EUA de Trump, o evangelho da exclusão ganharia um carimbo de chumbo do Vaticano.
Não se engane: a escolha do papa é o G20 da fé. No conclave, talvez, até haja menos fé e mais realpolitik. Francisco sabia disso: nomeou a imensa maioria dos cardeais, os possíveis papáveis, e mesmo assim nada está garantido. Seu sucessor, caso vista uma couraça medieval, transformará a Bíblia num manual de coaching com pregação reacionária. Lembre de padre Paulo Ricardo – quantos seguidores ganharia ao sentar-se ao lado direito do Papa? O céu seria o limite, prontíssimo para traduzir o Apocalipse em formato stories do Instagram enquanto seus seguidores digitam “amém” nos comentários para “saber mais”.
Roma respira ares de inquietação enquanto o corpo de Francisco repousa na Basílica. O Vaticano ainda exala poder e riqueza mesmo após as reformas de Francicso. Enquanto isso, na periferia da capital italiana, um menino sírio lava os pés de um indigente com a água tirada de uma fonte turística. Ninguém tuitou. Nenhum cardeal viu. Talvez a cena sequer tenha existido. No que depender da fúria dos cordeiros armados, ela estará destinada a sumir do mapa com a violência das fumaças. Fiquemos atentos.
Fonte: ICL Notícias