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Por Cleber Lourenço
Durante a sessão da Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara dos Deputados nesta quarta-feira (30), uma articulação conduzida por aliados de Jair Bolsonaro tentou usar o processo contra o deputado Alexandre Ramagem (PL-RJ) como atalho para suspender também a ação penal que atinge o ex-presidente.
O movimento, que gerou reação da base governista e de juristas, foi revelado após a leitura do relatório do deputado Alfredo Gaspar (União-AL), relator do pedido de sustação da Ação Penal nº 12.100, em tramitação no Supremo Tribunal Federal (STF).
No parecer, Gaspar afirma: “votamos pela sustação do andamento da Ação Penal contida na Petição n. 12.100, em curso no Supremo Tribunal Federal, em relação a todos os crimes imputados.”
A formulação genérica não delimita que a suspensão se refere exclusivamente a Alexandre Ramagem, o único dos denunciados com mandato parlamentar — e, portanto, protegido pelo artigo 53 da Constituição. Essa omissão é central para a manobra: ao não restringir os efeitos ao deputado, o texto abre margem para que a decisão da Câmara seja interpretada como extensiva a todos os réus do processo, incluindo Jair Bolsonaro.
Deputado Alfredo Gaspar (Foto: Divulgação)
Parlamentares presentes na sessão apontaram que a estratégia foi deliberadamente executada de forma silenciosa. Deputados da base afirmam que o relatório foi apresentado poucos minutos antes do início da sessão e em desacordo com o que havia sido combinado nos bastidores — a leitura e, em seguida, o pedido de vista.
“Foi tão descarado que o relator subiu o relatório de última hora, sem mencionar que a suspensão valeria apenas para Ramagem. Na prática, isso travaria o processo como um todo, o que é flagrantemente inconstitucional”.
O procedimento pegou parlamentares de surpresa, muitos dos quais já haviam deixado a sessão ou estavam com viagens marcadas, contando com um trâmite mais previsível.
O deputado Rubens Júnior (PT-MA), que estava presente na sessão, criticou a tentativa: “Com a oposição bolsonarista não tem um dia de descanso, não dá pra baixar a guarda. Quando a gente menos espera, eles inventam um jabuti no meio do relatório do recurso do Ramagem para tentar suspender toda a ação penal da qual Bolsonaro é réu. Tentam forçar interpretações constitucionais de ocasião para criar um factoide jurídico que embase sua narrativa ideológica. Pedimos vistas no relatório para ganhar tempo e articular uma resposta a mais essa tentativa de impunidade dos golpistas. Eu já tinha ouvido falar em trem da alegria, mas agora tão criando o trem da anistia.”
Imunidade parlamentar de Bolsonaro
Além do silêncio na articulação, há um aspecto técnico fundamental: a Súmula 245 do Supremo Tribunal Federal, que afirma de forma inequívoca que “a imunidade parlamentar não se estende ao corréu sem essa prerrogativa.”
Trata-se de entendimento consolidado da Corte, com base no artigo 53 da Constituição, que assegura garantias ao parlamentar em exercício, como a possibilidade de a Câmara sustar ação penal contra ele. No entanto, essas prerrogativas são personalíssimas. Ou seja, não podem ser transferidas ou estendidas a terceiros, mesmo que sejam corréus no mesmo processo.
O jurista Pedro Serrano reforça esse entendimento com clareza: “Isso não vai funcionar, porque é exatamente essa súmula. Inclusive se aplica à imunidade formal, ou seja, à possibilidade de a Câmara suspender o andamento de um processo criminal em relação ao parlamentar. O processo fica suspenso até terminar o mandato do deputado, e também suspende a prescrição. Mas essa imunidade formal não protege os demais réus, só o parlamentar. Quem não exerce o mandato não pode se beneficiar só pelo fato de ser corréu na ação. Se por um acaso suspenderem o andamento do processo em relação ao Ramagem, vai suspender em relação a ele, não em relação aos demais réus.”
A tentativa de incluir Bolsonaro na proteção prevista para Ramagem representa uma distorção do princípio da imunidade parlamentar. Juridicamente, configura uma tentativa de manipular o instrumento da sustação de ação penal, que existe para preservar o livre exercício do mandato parlamentar, e não para oferecer blindagem penal a ex-presidentes ou aliados políticos.
Caso a interpretação ampla do texto prospere no plenário da Câmara, o risco institucional é grande, com potencial para provocar uma reação direta do Supremo Tribunal Federal.
Essa possibilidade não é remota. Caso o projeto de resolução avance sem ajustes, o STF pode ser forçado a reafirmar a constitucionalidade da Súmula 245 e garantir o andamento do processo contra Jair Bolsonaro e os demais corréus não parlamentares.
Mais do que uma disputa jurídica, trata-se de um embate político: o uso de prerrogativas parlamentares para construir uma espécie de anistia informal, com aparência de legalidade, mas sem base constitucional.
O risco não está apenas no precedente, mas na sinalização. A aprovação de um texto com essa redação indicaria que o Congresso pode, por maioria simples, alterar de fato os limites impostos pelo STF e pela própria Constituição quanto às imunidades parlamentares. Isso enfraqueceria não apenas a autoridade da Corte, mas também o princípio da igualdade perante a lei.
Essa movimentação ocorre em um momento delicado para o ex-presidente. Jair Bolsonaro já foi declarado inelegível pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e enfrenta diversas frentes de investigações, inclusive criminais, como a acusação de participação em articulações golpistas após as eleições de 2022. A avaliação entre aliados do presidente é que uma eventual condenação de Bolsonaro por tentativa de golpe de Estado é inevitável.
A articulação, portanto, é mais do que uma simples manobra: é uma tentativa concreta de blindar o ex-presidente da responsabilização judicial por meio de atalhos legislativos. O desfecho da votação no plenário e a reação do Supremo podem determinar se esse tipo de estratégia terá espaço na institucionalidade brasileira ou se será rechaçada como uma afronta aos marcos constitucionais.
Fonte: ICL Notícias