Por Heloísa Villela
A procuradora Eugenia Gonzaga recita ao telefone um trecho da música “Podres poderes”, de Caetano Veloso:
“Será que apenas os hermetismos pascoais
E os tons, os mil tons
Seus sons e seus dons geniais
Nos salvam, nos salvarão
Dessas trevas e nada mais”
O verso veio em uma reação imediata como forma de responder à pergunta: o filme de Walter Salles, “Ainda estou aqui”, tão premiado e agora concorrendo ao Oscar, ajuda de alguma maneira o trabalho de busca pela verdade, pela justiça e pelo direito à memória?
Eugenia é presidente da Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos pela segunda vez. Esteve a frente do colegiado entre 2014 e 2019, até ser exonerada pelo governo de Jair Bolsonaro. Em outubro passado, quando a comissão foi re-instaurada, ela também voltou ao cargo. E à carga! Agora, vê no sucesso do filme, resultados positivos para a batalha de décadas para identificar e contar a história de todas as vítimas da ditadura militar.
Como o filme pode ajudar o trabalho da comissão? “A arte é fundamental porque a pessoa sente na pele. O filme tirou o foco da vítima e o colocou na família. Assim, as pessoas conseguem se colocar no lugar do outro”, diz Eugênia.
Ela é procuradora e sabe que a argumentação, em um tribunal, ou a descrição da realidade, em um noticiário, não têm nunca o mesmo alcance de uma obra de arte das boas. Aquelas que transportam as pessoas pela emoção, que conversam com o subjetivo, e atingem a alma.
Comissão identificou 360 casos
A Comissão de Mortos e Desaparecidos nasceu da luta ferrenha de famílias obstinadas, decididas a saber a verdade sobre o paradeiro de seus parentes. Os trabalhos começaram em 1995, com muita dificuldade. Mas identificaram 360 casos, lista que serviu de base para o funcionamento da Comissão da Verdade. Aliás, uma comissão criada por exigência da Corte Interamericana de Direitos Humanos, onde o estado brasileiro foi condenado e obrigado a encarar a história.
Em mais de uma entrevista, Marcelo Rubens Paiva, autor do livro que serviu de base para o filme, contou que fez pesquisas nos arquivos da Comissão da Verdade para completar lacunas históricas. O duro trabalho da busca por verdade e justiça municiou a reconstrução da memória eternizada no livro e no filme. A arte, agora, faz o caminho inverso, fortalecendo o trabalho de quem nunca entregou os pontos.
“O filme”, diz Eugênia, “sensibilizou muitas autoridades. Já foi mais fácil, no fim do ano passado, conseguir o apoio de parlamentares para o trabalho da comissão e vimos duas ações que estavam paradas no Supremo Tribunal Federal, que pedem punição para os responsáveis por mortes perpetradas pelo estado, recomeçarem a andar”.
A Comissão de Mortos e Desaparecidos luta por verba para fazer as investigações, os testes de DNA, as diligências e as identificações. Para isso, precisa de dinheiro. Em 2024, eles conseguiram emendas parlamentares que somaram pouco mais de R$ 1 milhão. Muito pouco para as necessidades que têm.
“Conseguimos sensibilizar cinco ou seis parlamentares. Mas agora, foram quase 20”, contou. Com isso, o orçamento do ano que vem vai chegar a R$ 3 milhões. Nada secreto. Tudo transparente. E antes que alguém pergunte, não, Eugênia não recebe para fazer parte da comissão. O trabalho não é remunerado.
Além da luta de décadas, ela tem um acervo emocional da história de Eunice Paiva, foco e inspiração do filme. Nos contatos que teve com a família Paiva, Eugenia descobriu que Eunice mergulhou de cabeça nos problemas do filho quando ele ficou tetraplégico. Cuidava de Marcelo, fazia massagens nas mãos dele o tempo todo e se envolveu com outras famílias que passavam por situações semelhantes.
“Através de amigos, soube de uma família no interior de Minas que tinha um filho passando pelo mesmo problema e recebeu um óculos especial para o rapaz ver televisão deitado”, conta Eugenia Quem sabe com quantas outras famílias ela se conectou e tentou ajudar como pode.
A filha Vera Paiva fez parte da Comissão de Mortos e Desaparecidos, como a mãe, que compunha o colegiado no começo dos trabalhos. E hoje trabalha com famílias da periferia. Segundo Eugênia, Vera mostra e conversa sobre o filme com essas famílias e descobriu que ele mobiliza as mães dessas comunidades. O elo é a violência do estado, com a qual elas convivem diariamente.
“O enfoque na família, na força da mãe protegendo os filhos, continua sendo o papel dessas mães, dessas famílias que sentem medo o tempo inteiro e a Vera me disse que com o filme foi possível comunicar que a luta é uma só”, diz Eugênia. Ela me oferece mais um verso, para encerrar a conversa. Dessa vez de Chico Buarque, na música Maninha, para explicar o sentimento de tanta gente, nos anos de chumbo, e nos dias de hoje.
“Se lembra quando toda modinha falava de amor?
Pois nunca mais cantei, oh maninha
Depois que ele chegou”