Manaus (AM) – Para ir de Eirunepé a Manaus de barco, o viajante leva entre 15 e 30 dias. O tempo mais curto ocorre em período de cheia dos rios. Já em época de seca, tudo fica mais difícil. Se o destino for o Hospital Universitário Getúlio Vargas (HUGV-UFAM/Ebserh) e o passageiro, uma mulher grávida em estado de saúde grave, tal percurso talvez não seja cumprido em tempo hábil para garantir o atendimento da gestante e do bebê com segurança. Como assegurar que essa paciente tenha acesso à assistência de obstetras e outros especialistas, sem a necessidade de se deslocar da sua cidade? Como evitar um desfecho trágico, que elevaria os índices de mortalidade materno-fetal entre os povos da floresta?
Pensando nisso, o HUGV-Ufam (da Universidade Federal do Amazonas e vinculado à Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares — Ebserh) e o Ministério da Saúde assinaram um Termo de Execução Descentralizada (TED), em julho de 2022, com o objetivo de reduzir a mortalidade materno-fetal em áreas remotas do Amazonas por meio do uso de tecnologias digitais de comunicação e informação. Intitulado “Telemonitoramento de Pré-natal de Alto Risco para Regiões Remotas do Amazonas”, o projeto já mostra resultados práticos. Dentre eles, a criação da plataforma digital Telepnar e a capacitação de centenas de profissionais.
NOVA CAPACITAÇÃO – Esta semana, um treinamento para médicos e enfermeiros que atuam em território indígena será realizado no município de Tefé, localizado a 523 km da capital amazonense. A “Capacitação de profissionais de saúde indígena do DSEI MRSA em pré-natal de alto risco” ocorrerá entre os dias 26 e 28 de julho no Auditório do Distrito Sanitário Especial Indígena (DSEI) Médio Rio Solimões e Afluentes. O público-alvo prioritário são os profissionais de saúde indígena que atuam na área desse distrito, mas também foram ofertadas vagas para profissionais do município de Tefé e os da região que atuam na Atenção Primária à Saúde. Durante o treinamento, haverá palestras com exercícios sobre temas relacionados ao pré-natal, como diabetes gestacional, hipertensão na gravidez, eclâmpsia e infecções sexualmente transmissíveis, além de simulação realística sobre trabalho de parto e suas complicações. A capacitação ainda prevê orientações sobre o uso da plataforma Telepnar (desenvolvida pela equipe do projeto).
Abrangência – O DSEI Médio Rio Solimões e Afluentes, cuja sede está localizada no município de Tefé, apresenta uma área de extensão territorial de 361.478,3 Km²; está situado na abrangência dos municípios de Maraã, Tefé, Uarini, Japurá, Juruá, Jutaí, Eirunepé, Envira, Carauari, Itamarati, Ipixuna, Alvarães, Fonte Boa e Coari. A população indígena local distribui-se em 185 aldeias e se divide em 21 etnias (Apurinã, Arara, Baniwa, Baré, Deni, Kaixana, Kambeba, Kanamari, Katawixi, Katukina, Kocama, Kulina, Maku, Mayoruna, Miranha, Mura, Satere-Maue, Tariano, Ticuna, Tukano e Yauanawá).
Além do HUGV-Ufam e do Ministério da Saúde, o projeto conta com a participação de outros atores, como o governo do Estado do Amazonas, por meio da Secretaria de Saúde, a Secretaria de Saúde da Prefeitura de Manaus e pastas da Saúde de outros municípios envolvidos na iniciativa. “O objetivo da multiplicidade de participantes é que cada um traga a sua experiência para o projeto, de modo que a gente possa executar de acordo com a cultura local, as condições locais, ambientando o projeto para que seja executado naquele município”, afirmou Ione Rodrigues Brum, médica obstetra do HUGV-Ufam e coordenadora do projeto.
Ela comentou que, muitas vezes, projetos de fora chegam ao Estado sem levar em conta a cultura amazonense. “Alguns projetos vêm com a ideia de uma vivência, com uma experiência que não é a nossa. Aí é difícil de executar e é muito difícil a adesão”, lembra. Para Ione Rodrigues, esse é um dos diferenciais do projeto de telessaúde em curso, pois, ao envolver atores de diferentes órgãos e instâncias, com “expertise e know-how”, fica mais fácil a adesão e a abordagem ao que se propõe implementar, inclusive na sensibilização dos pacientes.
RESULTADO ESPERADO: REDUÇÃO DE ÓBITOS E IMPACTO SOCIAL
A redução do número de óbitos materno-fetal é o principal resultado esperado. Além de permitir uma gravidez sem riscos para mãe e feto, o projeto visa a evitar remoções desnecessárias de pacientes para Manaus e/ ou, no outro extremo, remoções com a paciente em estado grave e irreversível, que pode resultar em mortes. “A gente espera poder captar essa gestante precocemente, de forma a tentar resolver a maioria das coisas lá no próprio município, não deixando evoluir para situações mais graves. Há toda uma situação social que esperamos poder ajudar ou minimizar. Acima de tudo: poder intervir precocemente, para que não venha a culminar no óbito materno”, ressalta a coordenadora do projeto. “A mortalidade materna é um problema sério no Brasil e bem mais incidente aqui na região Norte como um todo. No Amazonas, isso se reflete muito em função da dificuldade de acesso, da barreira cultural existente, da falta de profissionais especializados para atender situações consideradas gestações de alto risco, da falta de hospital, da falta de médicos no geral”.
MAIS DE 400 PROFISSIONAIS DE SAÚDE CAPACITADOS EM UM ANO
O projeto do MS em parceria com o hospital-escola da Ufam já capacitou cerca de 400 médicos e enfermeiros da Atenção Primária de pontos remotos do Amazonas desde a formalização da parceria. A capacitação se dá a distância ou de forma presencial, por meio de visitas técnicas. Até agora, o HUGV-Ufam atendeu mais de 20 municípios: 11 cidades previstas inicialmente na primeira etapa, incluindo a capital amazonense, e mais 12 após tratativas com o Conselho de Secretários Municipais de Saúde do Amazonas (Cosems-AM). A ideia é expandir o projeto para todos os 62 municípios do Estado e sem custos adicionais. Além disso, tratativas com o mesmo objetivo estão em curso com os sete DSEIs do Amazonas.
COMO É O TELEATENDIMENTO
O teleatendimento ocorre de forma assíncrona (ou seja, não é em tempo real) por meio da inserção na plataforma digital Telepnar de casos de pacientes que se enquadram no perfil de alto risco, como casos de hipertensão severa, diabetes, hemorragias, HIV e, inclusive, gravidez na adolescência, com pronta-resposta por parte dos ginecologistas do HUGV diariamente. Quando há necessidade de teleinterconsulta síncrona (quando há troca de informações e opiniões entre médicos em tempo real), o profissional de saúde situado no interior do Estado faz o agendamento, e o atendimento acontece com a presença da paciente. Na assistência à gestante, estão envolvidos médicos e enfermeiros obstetras. Caso seja preciso, outras especialidades serão acionadas. “À medida que for necessário o parecer de um cardiologista, de um reumatologista, de um cirurgião, pelo fato de o projeto estar sendo executado na Ufam, dentro do HUGV, há facilidade de acesso a esses profissionais, para que a gente possa realmente ter uma parceria com eles na resolução dos casos”, informou Ione Rodrigues.
DESENVOLVIMENTO DE APLICATIVO
O projeto de telessaúde inclui a criação de um aplicativo, que está em desenvolvimento pela equipe do HUGV-Ufam e já tem nome: Pré-natal Digital. Por meio de geolocalização, será possível fazer o rastreamento e o monitoramento das gestantes, com emissão de alertas sobre a data de consultas e de vacinas até o fim da gravidez, além do fornecimento de informações importantes, como dieta saudável e em conformidade com a região, cuidados com a pressão arterial e informações sobre infecções sexualmente transmissíveis. “Será uma importante ferramenta de gestão para o município e solução bem prática e acessível para a cidadã durante seu pré-natal, de forma bem interativa e de fácil manuseio”, explica o chefe da Unidade de E-saúde do HUGV, Pedro Elias. Atualmente, a equipe do HUGV-Ufam está trabalhando em um piloto para três localidades: Unidade Básica de Saúde (UBS) da área urbana em Manacapuru; UBS Ribeirinha no município de Careiro da Várzea; e no Polo Base na área indígena do município de Autazes.
Para o médico Pedro Elias, os resultados esperados em razão do uso das tecnologias digitais já são visíveis e evidenciam a importância de tais ferramentas. “Aliás, nesses 20 anos em que trabalho com telemedicina no Amazonas, tenho absoluta convicção de que num Estado que possui a maior bacia hidrográfica e a maior floresta tropical do planeta, com dimensões continentais e barreiras de acesso geográficas às vezes quase intransponíveis, o uso dessas tecnologias não são luxo”, ressalta. O chefe da Unidade de E-saúde do HUGV pontuou, ainda, que tais tecnologias são, na verdade, estratégicas na assistência aos povos da floresta. “Elas aproximam as políticas públicas do cidadão e cidadã que vivem, e sobrevivem, em regiões remotas e diminuem os enormes vazios assistenciais que temos aqui na Amazônia Brasileira”.
BARREIRAS CULTURAIS – Na elaboração do aplicativo Pré-natal Digital, a equipe também leva em consideração o surgimento de possíveis barreiras de linguagem entre equipe de assistência e usuários do Sistema Único de Saúde situados em áreas remotas da Amazônia, especialmente integrantes de comunidades indígenas. “Nosso pensamento é trabalhar com profissionais de saúde de origem indígena e que falem o português, além de sua língua-mãe, para efeito de tradução dos conteúdos. A Ufam possui alunos indígenas já graduados, de diversas etnias, com esse perfil que poderão contribuir com o processo”, explicou Pedro Elias. “Iremos produzir vídeos com essas características, direcionados para a mãe indígena. Isso tudo, obviamente, com o apoio do pessoal que trabalha e atua nessa área específica, ou seja, profissionais de DSEIs. Tanto gestores, como aqueles da área de saúde, notadamente porque possuem experiência exponencialmente maior que a nossa e conhecimento aprofundado do tema”, acrescentou.
SOBRE A EBSERH
O Hospital Universitário Getúlio Vargas integra a Rede Ebserh desde novembro de 2013. Vinculada ao Ministério da Educação (MEC), a Ebserh foi criada em 2011 e, atualmente, administra 41 hospitais universitários federais, apoiando e impulsionando suas atividades por meio de uma gestão de excelência. Como hospitais vinculados a universidades federais, essas unidades têm características específicas: atendem pacientes do Sistema Único de Saúde (SUS) ao mesmo tempo que apoiam a formação de profissionais de saúde e o desenvolvimento de pesquisas e inovação.