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uma análise crítica pelas vozes Potiguara e Tukano



Povo Potiguara da Paraíba no Acampamento Terra Livre 2022 (Cristina Potiguara)

01 de abril de 2025

Roger Adan Chambi Mayta – Especial para Cenarium

O colonialismo europeu em nossos territórios indígenas, para além da violência física exercida contra nossos povos, impôs uma série de narrativas destinadas a justificar suas ações. Entre os fundamentos religiosos do cristianismo, que questionavam nossa humanidade, e o discurso civilizatório que nos classificava como “selvagens”, foram estabelecidas normas reais que legalizavam o saque, a humilhação e o assassinato de milhares de nossos antepassados.

No entanto, também foram registradas ações de “boa-fé” por parte de alguns cristãos e membros da Coroa. No caso de Portugal, um marco importante foi o 1º de abril de 1680, dia em que o rei emitiu uma lei que formalmente aboliu a escravização dos povos indígenas, proibindo a captura de novos escravizados, embora sem afetar aqueles que já haviam sido submetidos antes de sua promulgação. Essa lei, como muitas outras no continente, se enquadrou na lógica colonial que permitia sua aceitação sem garantir seu cumprimento, respondendo aos princípios de “se acata, mas não se cumpre” ou “para o amigo, tudo; para o inimigo, a lei”.

Povo Potiguara da Paraíba no Acampamento Terra Livre 2022 (Cristina Potiguara)

Desde aquele 1º de abril até hoje, o sangue indígena continua a correr pelos rios que atravessam o território brasileiro. Os povos indígenas têm sido objeto de estudo em diversos projetos políticos, modas acadêmicas e preconceitos sociais, enquanto nossas culturas e sistemas de vida são constantemente ameaçados. No entanto, a resistência continua em diferentes frentes: nas ruas, na academia, na defesa de nossos territórios e na luta contra a violência colonial ainda vigente nos Estados-nação.

Da cidade de El Alto, Bolívia, território aymara de onde escrevo estas linhas, aproveito esta data para conversar com duas pesquisadoras indígenas brasileiras: Cristina de Lima Bernardo, do povo Potiguara e antropóloga da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (Cristina Potiguara); e Rosijane Fernandes Moura, do povo Tukano e antropóloga da Universidade Federal do Amazonas (Rosijane Tukano), que realizam suas estadias doutorais nesta cidade andina. Por meio deste diálogo, busco compreender como percebem e analisam a situação dos povos indígenas no Brasil, os desafios que enfrentam na defesa de seus territórios e direitos, bem como as estratégias de resistência que desenvolveram diante da violência estatal e da discriminação estrutural.

Povo Xukuru do Ororubá no Acampamento Terra Livre 2022 (Cristina Potiguara)

1º de abril: dizem que a escravização indígena no Brasil foi abolida desde 1680. O que acham sobre isso?

Cristina Potiguara: A abolição da escravidão indígena em 1680 marcou um momento histórico, mas as violências coloniais nunca cessaram, apenas mudaram de forma. O sistema colonial, que tentou exterminar fisicamente os povos indígenas e apagar suas culturas, continua vivo nas políticas, leis, economia e relações sociais. Essas novas formas de violência se manifestam em diferentes dimensões e podem ser observadas na história do povo Potiguara da Paraíba, que resiste há séculos contra a exploração e o esvaziamento de seu território.

Rosijane Tukano:  O Dia da Abolição da Escravidão Indígena não é uma data a ser celebrada ou comemorada no Brasil, mas sim uma data para refletir sobre a realidade atual dos povos indígenas. Apesar da abolição formal da escravidão, a luta pela justiça e igualdade continua sendo uma realidade cotidiana para nossas comunidades. Mesmo no ano de 1680 não foi prontamente aceito pelos colonos, até hoje a visão de que os povos originários possuem um grande território e que possuem “privilégios” são uma imagem distorcida da realidade. Logo que, as comunidades indígenas continuam lutando, após 345 anos, para não cair na escravidão psicológica, física e muitas vezes pela própria lei que deveria garantir nossos direitos.

Mencionam as violências que perduram até hoje. Como pesquisadoras acadêmicas pertencentes a povos indígenas, como isso se evidencia no campo da educação?

Cristina Potiguara: A violência cultural e simbólica se manifesta na negação da identidade indígena, com discursos que questionam a indigeneidade de quem fala português, vive na cidade ou usa tecnologia; a violência epistêmica que ocorre por meio da imposição de uma educação eurocêntrica, que ignora ou distorce a história indígena e desvaloriza saberes tradicionais; a exclusão dos indígenas dos espaços de decisão, devido a barreiras estruturais dentro da política institucional. No caso dos Potiguara, essa exclusão se deu historicamente pelo próprio sistema colonial que tentou integrá-los à sociedade não indígena por meio do trabalho nos engenhos e da catequização forçada, enfraquecendo suas línguas e tradições. Neste ponto vale ressaltar que o enfraquecimento de maior potencialidade acarretou na perca da língua materna o “Tupi antigo”, no entanto de acordo com a cosmovisão, o povo Potiguara continua realizando suas práticas culturais, a exemplo das danças: toré e coco de roda, além das músicas que conciliada as danças são praticadas em rituais. Estes ritos são símbolos de resistência e para os Potiguara, dar continuidade a esse legado é introduzi-los nos mais diversos espaços de formação, sejam nas escolas indígenas que dentro do território Potiguara tanto as escolas municipais quanto estaduais adotam uma metodologia de ensino diferenciado, ofertando disciplinas que trabalhe com arte e cultura, música e danças além da língua materna indígena.

Assembleia do Povo Potiguara da Paraíba 2024 (Cristina Potiguara)

Rosijane Tukano:  Um direito básico é o acesso à educação específica, diferenciada, intercultural, bilíngue, de qualidade e pertinente às nossas culturas, garantida aos povos pela Constituição de 1988, porém esse direito “básico” não é respeitado, como exemplo temos o estado do Pará que recentemente ganhou destaque entre as redes sociais, no qual as aulas presenciais em territórios e comunidades indígenas foram substituídas por aulas virtuais. Não sendo suficiente, de acordo com a Lei Orçamentária Anual (LOA) de 2025, que necessita da aprovação dos parlamentares paraenses, somente R$500 mil serão destinados para a implementação da Educação Escolar Indígena. Entre 2023 e 2024, o investimento destinado à Educação Indígena no Pará teve um corte de 85%. Há quem diga “para que os índios querem uma sala de aula estruturada? Que sentem no chão, nos troncos e suas escolas de palhas, que continuem no mato”, foram essas palavras que ouvi de um servidor público no ano de 2017. Quase 10 anos após ouvir esse servidor, nota-se que não mudou, se os povos indígenas e seus aliados não lutarem, colocarem seus corpos em perigo contra o próprio governo, não possuem os ditos “privilégios”.

Os preconceitos contra nossos povos continuam sendo uma realidade. Como isso afeta o projeto de autodeterminação indígena?

Cristina Potiguara: O racismo contra os povos indígenas não é algo do passado, ele se manifesta diariamente, nas cidades, nas escolas, nos espaços de trabalho e até dentro das próprias políticas públicas. Nossa identidade é constantemente questionada e invisibilizada, como se só fôssemos indígenas se estivermos nus, vivendo só na floresta e sem acesso a tecnologias. Esse pensamento racista, criado pelo colonialismo, tenta negar nossa existência no presente, como se os povos indígenas não pudessem se adaptar e continuar sendo indígenas em qualquer lugar que estejam. Entre os Potiguara da Paraíba, essa discriminação é visível na forma como nossa identidade foi negada por séculos. O processo de colonização e catequização forçada tentou nos apagar, mas nunca deixamos de existir. No entanto, o racismo ainda se reflete no preconceito contra quem se assume indígena, na falta de reconhecimento dos nossos direitos.

A presença de lideranças indígenas na política e em movimentos sociais também mostra que estamos ocupando lugares de decisão e exigindo nossos direitos. Promover políticas de inclusão e reconhecimento significa garantir que os povos indígenas tenham voz nas decisões que afetam suas vidas. Significa combater o racismo estrutural que nos exclui e nos silencia, garantindo que nossas culturas, línguas e modos de vida sejam respeitados e valorizados. A resistência Potiguara e de tantos outros povos indígenas segue firme, porque sabemos que a nossa existência é, por si só, um ato político e uma resposta àqueles que tentaram – e ainda tentam – nos apagar. Tentaram nos matar pela cepa, mas esqueceram que somos raízes.

Rosijane Tukano: Na visão de alguns, os povos indígenas são aqueles do ano de 1500, com penas, suas roupas tradicionais, suas pinturas corporais, suas casas de palhas e barros, onde os descendentes de portugueses, espanhois, franceses e todos que invadiram nossos territórios indígenas podem viver conforme o século, conforme a atualidade, mas quando se trata dos povos indígenas, somente são indígenas aqueles vivem conforme o século XV ou dos XIX. No dia 19 de abril nas escolas primárias distribuem desenhos de indíos para as crianças pintarem, pintam seus rostos com tintas guache sem saber a real finalidade da pintura corporal, colocam nas cabeças das crianças cocas feitos de cartolinas, sem mesmo saber a importância desse objeto sagrado, ensaiam danças que nem mesmo elas conhecem e fazem soar um sonido de mão em suas bocas para “representar” os povos. Não é assim que a luta contra o racismo e todas as formas de discriminação, bem como a promoção de políticas, não de inclusão, mas de reconhecimento ganhará força. É na pré-escola que se deve iniciar a igualdade, para que no futuro, nas cadeiras de poderes, estejam pessoas capazes de reconhecer que nosso país foi constituído de sangue indígena e negro.

A escravização indígena começou com o despojo de nossas terras. A luta pela terra e pelo território continua sendo vigente. Como devemos refletir sobre esta data em relação à nossa luta contínua pelo território?

Cristina Potiguara: Para nós, povos indígenas, o território não é apenas um pedaço de terra: é a base da nossa existência, da nossa espiritualidade e do nosso Bem Viver. O território é onde os nossos ancestrais estão plantados (de acordo com a cosmovisão Potiguara), onde os encantados habitam e onde garantimos a continuidade da nossa cultura. Sem a terra, não há identidade, não há vida. Nossa relação com a natureza é de cuidado e reciprocidade, pois compreendemos que somos parte dela, não seus donos. No entanto, essa conexão sagrada é constantemente ameaçada por inserção de algumas formas de cultivos a exemplo da monocultura, mineração desmatamentos e dos megaprojetos que ignoram e desrespeitam nossa forma de vida.

Mesmo diante dessas ameaças, seguimos resistindo. Retomamos terras, fortalecemos nossas práticas agrícolas tradicionais e reafirmamos nossa relação com o território por meio do plantio de alimentos diversos, da proteção das nascentes (a exemplo de um projeto que atua dentro do território Potiguara chamado “Águas Potiguara”) e da valorização dos nossos conhecimentos ancestrais. Nossa luta não é apenas por um pedaço de terra, mas pela continuidade do nosso povo, pela preservação da natureza e pelo reconhecimento de que nossa existência está diretamente ligada à saúde do planeta. Para nós, proteger o território não é uma escolha, mas uma obrigação diante dos nossos ancestrais e das futuras gerações. Somos Frutos de resistências.

Rosijane Tukano: O Marco Temporal é uma tese jurídica segundo a qual nós, povos indígenas, teríamos direito apenas às terras que já ocupávamos ou disputávamos em 5 de outubro de 1988. Mas a tese, desconsidera que quando os portugueses chegaram havia mais de 4,5 milhões de indígenas que ocupavam esse território, que as expedições cruéis invadiam as aldeias, estupraram, exploraram e escravizaram e que muitos povos para a sua sobrevivência deslocaram-se. Na minha opinião, é apenas uma forma de dificultar o nosso direito aos territórios de nossos ancestrais para que eles (fazendeiros, agronegócios, etc) explorem as terras e os recursos naturais que há nelas, logo que desde ao nascer somos ensinados que muitos de nossos territórios sagrados são intocados, pois temos respeito pelos outros seres que ali vivem.

O dia 1º de abril foi apena um ato simbólico, mas que necessita de atos verdadeiros, que não se mantenha somente em papel, necessita de conscientização social, que o mês de abril, não é o mês para lembrar que se tem um amigo indígena e convidá-lo para uma fala, uma palestra, uma apresentação de sua cultura. Mas lembrar que muitos povos foram extintos, transformar essa data e mês em uma reparação histórica, não para corrigir o passado, nem para esperarmos um futuro melhor, mas sim para construí-lo hoje, agora, pois estamos aqui, lutando, buscando ser ouvidos e poder ocupar os espaços que temos direitos, que não são “privilégios” por sermos indígenas, mas uma conquista por nossas lutas e de nossos antepassados.

O 1º de abril, como data de comemoração da abolição da escravização indígena, deve ser um lembrete de que os povos indígenas seguimos lutando pela nossa autodeterminação, pelo reconhecimento de nossos direitos e pela reparação histórica que nos foi negada durante séculos. Que as vozes de Cristina Potigura e Rosijane Tukano sejam um convite para refletir sobre a necessidade de questionar as narrativas coloniais que persistem e trabalhar por um compromisso com a justiça para uma vida livre da colonialidade.

Cidade de El Alto, Bolívia, 1º de abril de 2025.



Fonte: Agência Cenarium

Amazonas Repórter

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